quinta-feira, 17 de maio de 2012

Síria: Não a Assad, não à intervenção estrangeira!

13 de Fevereiro de 2012. Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar.
As forças armadas norte-americanas «começaram a reanalisar potenciais opções militares» na Síria, segundo o jornal The New York Times (12 de Fevereiro). Um responsável militar norte-americano não identificado disse a esse jornal de referência: «Estamos a ver toda uma gama de opções, mas quanto a definir um rumo de acção, não vi nada». A notícia diz que as «possíveis opções» que estão a ser consideradas incluem «tudo, desde não fazer nada a armar os rebeldes para acções encobertas, ataques aéreos ou a utilização de tropas terrestres».

Esta admissão surge numa altura em que os EUA já estão a apoiar várias formas de intervenção na Síria, incluindo os esforços da Turquia para usar elementos militares da oposição síria na formação de um exército sob o seu controlo, e dinheiro e armas que supostamente estão a afluir para o país a partir do Qatar e da Arábia Saudita. Os sauditas quase certamente estão a apoiar os seus congéneres fundamentalistas islâmicos sunitas, tal como o têm feito em todo o lado.

Há muitos anos que os EUA têm prosseguido em relação à Síria uma política muitas vezes ambígua, trabalhando para isolarem e debilitarem o regime ao mesmo tempo que também reconhecem a sua importância para a preservação da actual situação na região, numa altura em que isso tem sido um importante objectivo norte-americano. Nos anos 70, Hafez al-Assad, pai de Bashar, esmagou o movimento revolucionário palestiniano então instalado no Líbano, impôs a paz com Israel apesar da ocupação sionista desde 1967 dos Montes Golã sírios e apoiou os EUA durante a invasão do Iraque em 1991.
Quando a revolta síria rebentou em Março passado, inspirada por similares revoltas espontâneas que derrubaram Mubarak no Egipto e Ben Ali na Tunísia, os EUA não apoiaram a sua principal reivindicação, a queda do regime. Pelo contrário, Washington apelou a Assad que implementasse reformas económicas e políticas com o objectivo de satisfazer o movimento e, ao mesmo tempo, tornar mais fácil atrair a Síria para a órbita dos EUA.

Salameh Kaileh, um proeminente marxista árabe da Palestina que vive na Síria, disse em Agosto passado numa entrevista ao SNUMAG que essa revolta, foi desencadeada pelos estratos médios das zonas rurais. Nas pequenas cidades de província, ela envolve agora todas as classes sociais, incluindo os comerciantes e capitalistas locais, disse Kaileh.

«Há razões para que Damasco e Allepo não se tenham mexido», disse ele nessa altura. «Primeiro, a concentração de forças de segurança torna qualquer protesto aí muito difícil. Além disso, essas duas cidades beneficiaram das mudanças económicas do período anterior. Assim, vimos Aleppo beneficiar da abertura económica à Turquia e ao Iraque. Damasco, por seu lado, beneficiou do desenvolvimento da economia de serviços e turismo. Mas, no entanto, nestas duas cidades há muitos sectores pobres que estão a começar a movimentar-se.»

Esta situação tem sido complicada pelo perigo de a revolta ser esmagada e degenerar num conflito étnico e religioso. O regime tem as suas principais forças sobretudo entre os clãs alauitas (um ramo do Islão xiita), com o apoio de forças cristãs, uma configuração cujo domínio do país foi herdada da ocupação francesa. A revolta tem estado enraizada sobretudo entre a maioria sunita, bem como entre os curdos. Imperdoavelmente, o regime também tem desfrutado do apoio ou da neutralidade de quase toda a suposta esquerda da Síria que, ao contrário da Tunísia e do Egipto, têm desempenhado um papel muito pequeno no movimento de massas.
 
A revolta tem usado frequentemente slogans e praticado actos que realçam a unidade do povo sírio contra o regime, enquanto tem sido o regime que mais tem alimentado as faíscas do conflito étnico para se apresentar como única alternativa. Mas claramente o regime não é o único a ver o potencial de conflitos entre o povo como forma de atingir os seus objectivos reaccionários.

Foi só a 18 de Agosto que Washington pediu a Assad para sair. Isso não aconteceu porque o governo Obama tenha repentinamente descoberto quão sanguinário é o regime sírio. Já tinham decorrido cinco meses de massacres de manifestantes civis desarmados e durante anos os EUA entregaram presos à Síria, justamente para que eles fossem torturados. Mas os EUA viram tanto uma necessidade como uma oportunidade na actual situação.

Como disse Kaileh, os EUA estavam agora a tentar impor uma mudança de regime, mas uma mudança de regime controlada, esperando evitar libertar forças ingovernáveis, entre as quais as próprias massas populares sírias, que poderiam levar a um resultado que iria destabilizar toda a estrutura de domínio dos EUA na região, incluindo os regimes das vizinhas Turquia e Jordânia.

«Seguindo o modelo tunisino e egípcio, essa mudança (desejada pelos EUA na Síria) não seria radical mas sim uma mudança dentro do próprio regime», disse Kaileh. Uma possível forma seria uma divisão dentro da estrutura de poder, em particular as forças armadas, e um golpe de estado, espicaçada ou mesmo provavelmente fomentada por uma intervenção militar estrangeira.

«A necessidade foi a de se envolverem para resolverem uma situação – uma insurreição popular – que coloca em perigo os interesses norte-americanos. A oportunidade foi que se tornou possível conceber afastar um regime que antes era estável e formava um bloco com a República Islâmica do Irão, o Hamas palestiniano e o Hezbollah do Líbano, colocando sérios problemas aos EUA e ameaçando os seus aliados regionais reaccionários. Não é coincidência que a ânsia norte-americana em derrubar Assad surge no meio de um aumento das ameaças norte-americanas de atacar o Irão e/ou apoiar Israel nesse ataque.

Mesmo numa altura em que a revolta popular no Médio Oriente e Norte de África continua a desafiar intensamente alguns dos actuais regimes e formas de domínio imperialista e em que o génio do despertar dos povos saiu da garrafa, em vez de cederem perante a vontade popular ou mesmo de se retirarem ligeiramente, os EUA tem trabalhado em defesa dos seus interesses no meio destas águas turbulentas.
Aos chamados modelos tunisino e egípcio foi agora acrescentado o «modelo líbio» em que os EUA e as potências europeias (agindo tanto em convergência com os EUA como em resultado da rivalidade com os EUA e entre elas) basicamente invadiram (mesmo que sobretudo a partir dos céus) e derrubaram o regime de Kaddafi. Essa demonstração de força visou não só afirmar o controlo da Líbia mas também proclamar e manter o domínio regional face tanto aos povos como a outros rivais, incluindo a Rússia e a China.

A interferência estrangeira e o alimentar da guerra civil pelos EUA e seus aliados na Síria são exactamente o tipo de coisas por que supostamente a ONU existe para impedir. Há alguns anos, os EUA ventilaram ameaças contra o regime de Assad por interferir no Líbano e exigiram que a ONU interviesse. Para os EUA, Grã-Bretanha e França, a questão não é o que é moralmente correcto ou legal segundo o direito internacional mas o que é que serve os seus interesses imperialistas.

Agora essas potências tomaram a posição oposta em relação à Síria: a interferência externa pode ser justificada porque Assad está a «matar o seu próprio povo». Além disso, se é verdade que forças ligadas à Al-Qaeda no Iraque estão agora a combater na Síria, isso não está desligado do facto de os estados do Golfo estarem aí a apoiar outras forças fundamentalistas islâmicas. A questão, para o Ocidente, é que a interferência deles (ou de movimentos apoiados por eles) é boa, enquanto qualquer outra é uma desculpa para... uma Intervenção da NATO.

Como salientou Robert Fisk no jornal britânico The Independent, uma ilustração particularmente aguda da hipocrisia dos EUA e da Europa é que os monarcas absolutos da Arábia Saudita e do Qatar são agora retratados como os melhores campeões regionais da «democracia» na Síria. O facto de o regime saudita ter enviado tropas para esmagar uma revolta da maioria xiita no Barém e de andar a disparar sobre manifestantes xiitas na Arábia Saudita Oriental tem sido educadamente ignorado.
A crescente importância da aliança entre os EUA e os estados reaccionários do Golfo – motivada pelo pavor que a «Primavera Árabe» produz em todos eles – é exemplificada pelo facto de eles terem conseguido alterar a posição da Liga Árabe da noite para o dia, de uma pelo menos aparente neutralidade em relação ao regime de Assad para a proposta de um plano assombrosamente arrogante e detalhado para o que deve acontecer posteriormente na Síria, começando por uma transferência de poder de Assad para outras pessoas dentro do regime dele, com ou sem golpe militar.

A Liga Árabe apelou a uma «missão conjunta árabe-ONU de manutenção da paz» na Síria, mas isto não tem a ver com paz. Apelou ao fornecimento «de todas as formas de apoio moral e material» às forças de oposição, mas isto não tem a ver com ajudar a implementar o que tem sido até agora o principal impulso da revolta popular, o fim da opressão.

Ao que se assemelha mais é à «diplomacia de canhoneira» do século XIX, quando as potências ocidentais usavam os seus navios de guerra para forçarem os governos locais ainda não sob controlo colonial a aceitarem ponto-por-ponto uma agenda imposta. O facto de estas exigências virem de bocas árabes não altera o facto de que foram os EUA a escrever o guião, ou pelo menos a dar-lhe luz verde. Como é que as monarquias do Golfo poderiam ameaçar a Síria sem o espectro das canhoneiras (e aviões e exércitos) ocidentais a assomar por trás delas?

Com o pretexto de que Saddam Hussein estava a «matar o seu próprio povo», duas invasões separadas por uma década de sanções criminosas não só resultaram na morte de muitas centenas de milhar de pessoas, como também mergulharam o povo iraquiano na noite mais negra que ele alguma vez enfrentou, uma situação muito desfavorável à revolta. Então, com o mesmo pretexto, surge o modelo «líbio» em que um regime que se tinha tornado altamente complacente com os interesses ocidentais (e sobretudo os britânicos e italianos) foi derrubado no meio da libertação de todo o tipo de interesses e forças reaccionárias, tornando a vida na Líbia hoje num inferno maior que em qualquer momento anterior.

Nesta altura, os EUA não estão em posição de montar uma nova invasão em larga escala, graças não a qualquer súbita mudança de posição mas sim como resultado dos projectos norte-americanos no Iraque e no Afeganistão. Por outro lado, o tipo de guerra «barata» na Líbia (barata para os EUA e outros membros da NATO, não para o povo líbio que ainda está a pagar um preço horrendo) pode não ser possível na Síria, onde os últimos cinco meses de revolta têm mostrado que o regime reaccionário têm uma forte base social, bem como um verdadeiro exército.

Os estrategas norte-americanos (veja-se, por exemplo, www.ForeignPolicy.com) lamentam o facto de que uma «zona de exclusão aérea» teria pouco efeito na Síria, onde o regime não tem usado aviões militares, e de o poder aéreo não poder ser aplicado para ajudar as forças anti-regime porque a extensão dos combates que agora decorrem acontece em cidades densamente povoadas. «O que é apresentado como alternativa a uma intervenção militar [terrestre] servirá mais provavelmente, quando falhar, para abrir caminho a uma intervenção », avisa Marc Lynch nessa publicação.
Um golpe de estado irá proporcionar-lhes uma solução? Isso é uma possibilidade, mas a Síria não é como a Tunísia e o Egipto em que as forças armadas estavam intimamente ligadas aos EUA e tinham a sua confiança e não estavam totalmente identificadas com o regime na mente das pessoas. As forças armadas sírias acumularam enormes dívidas de sangue para com importantes sectores do povo.
Não é possível prever o que irá acontecer – como é que os EUA e os seus aliados podem tentar resolver o seu dilema e tomar posse da Síria. Mas nesta altura já deveríamos saber, depois de tudo o que vimos no Iraque, no Afeganistão, na Líbia e em tantos outros lugares, que aquilo de que os imperialistas são capazes por vezes é pior do que podemos imaginar – e que as consequências das intervenções deles são sempre desastrosos para o povo.

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