13 de
Fevereiro de 2012. Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar.
As forças armadas norte-americanas «começaram a reanalisar potenciais opções
militares» na Síria, segundo o jornal The New York Times (12 de
Fevereiro). Um responsável militar norte-americano não identificado disse a esse
jornal de referência: «Estamos a ver toda uma gama de opções, mas quanto a
definir um rumo de acção, não vi nada». A notícia diz que as «possíveis opções»
que estão a ser consideradas incluem «tudo, desde não fazer nada a armar os
rebeldes para acções encobertas, ataques aéreos ou a utilização de tropas
terrestres».
Esta admissão surge numa altura em que os EUA já estão a apoiar várias formas
de intervenção na Síria, incluindo os esforços da Turquia para usar elementos
militares da oposição síria na formação de um exército sob o seu controlo, e
dinheiro e armas que supostamente estão a afluir para o país a partir do Qatar e
da Arábia Saudita. Os sauditas quase certamente estão a apoiar os seus
congéneres fundamentalistas islâmicos sunitas, tal como o têm feito em todo o
lado.
Há muitos anos que os EUA têm prosseguido em relação à Síria uma política
muitas vezes ambígua, trabalhando para isolarem e debilitarem o regime ao mesmo
tempo que também reconhecem a sua importância para a preservação da actual
situação na região, numa altura em que isso tem sido um importante objectivo
norte-americano. Nos anos 70, Hafez al-Assad, pai de Bashar, esmagou o movimento
revolucionário palestiniano então instalado no Líbano, impôs a paz com Israel
apesar da ocupação sionista desde 1967 dos Montes Golã sírios e apoiou os EUA
durante a invasão do Iraque em 1991.
Quando a revolta síria rebentou em Março passado, inspirada por similares
revoltas espontâneas que derrubaram Mubarak no Egipto e Ben Ali na Tunísia, os
EUA não apoiaram a sua principal reivindicação, a queda do regime. Pelo
contrário, Washington apelou a Assad que implementasse reformas económicas e
políticas com o objectivo de satisfazer o movimento e, ao mesmo tempo, tornar
mais fácil atrair a Síria para a órbita dos EUA.
Salameh Kaileh, um proeminente marxista árabe da Palestina que vive na Síria,
disse em Agosto passado numa entrevista ao SNUMAG que essa revolta, foi
desencadeada pelos estratos médios das zonas rurais. Nas pequenas cidades de
província, ela envolve agora todas as classes sociais, incluindo os comerciantes
e capitalistas locais, disse Kaileh.
«Há razões para que Damasco e Allepo não se tenham mexido», disse ele nessa
altura. «Primeiro, a concentração de forças de segurança torna qualquer protesto
aí muito difícil. Além disso, essas duas cidades beneficiaram das mudanças
económicas do período anterior. Assim, vimos Aleppo beneficiar da abertura
económica à Turquia e ao Iraque. Damasco, por seu lado, beneficiou do
desenvolvimento da economia de serviços e turismo. Mas, no entanto, nestas duas
cidades há muitos sectores pobres que estão a começar a movimentar-se.»
Esta situação tem sido complicada pelo perigo de a revolta ser esmagada e
degenerar num conflito étnico e religioso. O regime tem as suas principais
forças sobretudo entre os clãs alauitas (um ramo do Islão xiita), com o apoio de
forças cristãs, uma configuração cujo domínio do país foi herdada da ocupação
francesa. A revolta tem estado enraizada sobretudo entre a maioria sunita, bem
como entre os curdos. Imperdoavelmente, o regime também tem desfrutado do apoio
ou da neutralidade de quase toda a suposta esquerda da Síria que, ao contrário
da Tunísia e do Egipto, têm desempenhado um papel muito pequeno no movimento de
massas.
A revolta tem usado frequentemente slogans e praticado actos que
realçam a unidade do povo sírio contra o regime, enquanto tem sido o regime que
mais tem alimentado as faíscas do conflito étnico para se apresentar como única
alternativa. Mas claramente o regime não é o único a ver o potencial de
conflitos entre o povo como forma de atingir os seus objectivos reaccionários.
Foi só a 18 de Agosto que Washington pediu a Assad para sair. Isso não
aconteceu porque o governo Obama tenha repentinamente descoberto quão
sanguinário é o regime sírio. Já tinham decorrido cinco meses de massacres de
manifestantes civis desarmados e durante anos os EUA entregaram presos à Síria,
justamente para que eles fossem torturados. Mas os EUA viram tanto uma
necessidade como uma oportunidade na actual situação.
Como disse Kaileh, os EUA estavam agora a tentar impor uma mudança de regime,
mas uma mudança de regime controlada, esperando evitar libertar forças
ingovernáveis, entre as quais as próprias massas populares sírias, que poderiam
levar a um resultado que iria destabilizar toda a estrutura de domínio dos EUA
na região, incluindo os regimes das vizinhas Turquia e Jordânia.
«Seguindo o modelo tunisino e egípcio, essa mudança (desejada pelos EUA na
Síria) não seria radical mas sim uma mudança dentro do próprio regime», disse
Kaileh. Uma possível forma seria uma divisão dentro da estrutura de poder, em
particular as forças armadas, e um golpe de estado, espicaçada ou mesmo
provavelmente fomentada por uma intervenção militar estrangeira.
«A necessidade foi a de se envolverem para resolverem uma situação – uma
insurreição popular – que coloca em perigo os interesses norte-americanos. A
oportunidade foi que se tornou possível conceber afastar um regime que antes era
estável e formava um bloco com a República Islâmica do Irão, o Hamas
palestiniano e o Hezbollah do Líbano, colocando sérios problemas aos EUA e
ameaçando os seus aliados regionais reaccionários. Não é coincidência que a
ânsia norte-americana em derrubar Assad surge no meio de um aumento das ameaças
norte-americanas de atacar o Irão e/ou apoiar Israel nesse ataque.
Mesmo numa altura em que a revolta popular no Médio Oriente e Norte de África
continua a desafiar intensamente alguns dos actuais regimes e formas de domínio
imperialista e em que o génio do despertar dos povos saiu da garrafa, em vez de
cederem perante a vontade popular ou mesmo de se retirarem ligeiramente, os EUA
tem trabalhado em defesa dos seus interesses no meio destas águas turbulentas.
Aos chamados modelos tunisino e egípcio foi agora acrescentado o «modelo
líbio» em que os EUA e as potências europeias (agindo tanto em convergência com
os EUA como em resultado da rivalidade com os EUA e entre elas) basicamente
invadiram (mesmo que sobretudo a partir dos céus) e derrubaram o regime de
Kaddafi. Essa demonstração de força visou não só afirmar o controlo da Líbia mas
também proclamar e manter o domínio regional face tanto aos povos como a outros
rivais, incluindo a Rússia e a China.
A interferência estrangeira e o alimentar da guerra civil pelos EUA e seus
aliados na Síria são exactamente o tipo de coisas por que supostamente a ONU
existe para impedir. Há alguns anos, os EUA ventilaram ameaças contra o regime
de Assad por interferir no Líbano e exigiram que a ONU interviesse. Para os EUA,
Grã-Bretanha e França, a questão não é o que é moralmente correcto ou legal
segundo o direito internacional mas o que é que serve os seus interesses
imperialistas.
Agora essas potências tomaram a posição oposta em relação à Síria: a
interferência externa pode ser justificada porque Assad está a «matar o seu
próprio povo». Além disso, se é verdade que forças ligadas à Al-Qaeda no Iraque
estão agora a combater na Síria, isso não está desligado do facto de os estados
do Golfo estarem aí a apoiar outras forças fundamentalistas islâmicas. A
questão, para o Ocidente, é que a interferência deles (ou de movimentos apoiados
por eles) é boa, enquanto qualquer outra é uma desculpa para... uma Intervenção
da NATO.
Como salientou Robert Fisk no jornal britânico The Independent, uma
ilustração particularmente aguda da hipocrisia dos EUA e da Europa é que os
monarcas absolutos da Arábia Saudita e do Qatar são agora retratados como os
melhores campeões regionais da «democracia» na Síria. O facto de o regime
saudita ter enviado tropas para esmagar uma revolta da maioria xiita no Barém e
de andar a disparar sobre manifestantes xiitas na Arábia Saudita Oriental tem
sido educadamente ignorado.
A crescente importância da aliança entre os EUA e os estados reaccionários do
Golfo – motivada pelo pavor que a «Primavera Árabe» produz em todos eles – é
exemplificada pelo facto de eles terem conseguido alterar a posição da Liga
Árabe da noite para o dia, de uma pelo menos aparente neutralidade em relação ao
regime de Assad para a proposta de um plano assombrosamente arrogante e
detalhado para o que deve acontecer posteriormente na Síria, começando por uma
transferência de poder de Assad para outras pessoas dentro do regime dele, com
ou sem golpe militar.
A Liga Árabe apelou a uma «missão conjunta árabe-ONU de manutenção da paz» na
Síria, mas isto não tem a ver com paz. Apelou ao fornecimento «de todas as
formas de apoio moral e material» às forças de oposição, mas isto não tem a ver
com ajudar a implementar o que tem sido até agora o principal impulso da revolta
popular, o fim da opressão.
Ao que se assemelha mais é à «diplomacia de canhoneira» do século XIX, quando
as potências ocidentais usavam os seus navios de guerra para forçarem os
governos locais ainda não sob controlo colonial a aceitarem ponto-por-ponto uma
agenda imposta. O facto de estas exigências virem de bocas árabes não altera o
facto de que foram os EUA a escrever o guião, ou pelo menos a dar-lhe luz verde.
Como é que as monarquias do Golfo poderiam ameaçar a Síria sem o espectro das
canhoneiras (e aviões e exércitos) ocidentais a assomar por trás delas?
Com o pretexto de que Saddam Hussein estava a «matar o seu próprio povo»,
duas invasões separadas por uma década de sanções criminosas não só resultaram
na morte de muitas centenas de milhar de pessoas, como também mergulharam o povo
iraquiano na noite mais negra que ele alguma vez enfrentou, uma situação muito
desfavorável à revolta. Então, com o mesmo pretexto, surge o modelo «líbio» em
que um regime que se tinha tornado altamente complacente com os interesses
ocidentais (e sobretudo os britânicos e italianos) foi derrubado no meio da
libertação de todo o tipo de interesses e forças reaccionárias, tornando a vida
na Líbia hoje num inferno maior que em qualquer momento anterior.
Nesta altura, os EUA não estão em posição de montar uma nova invasão em larga
escala, graças não a qualquer súbita mudança de posição mas sim como resultado
dos projectos norte-americanos no Iraque e no Afeganistão. Por outro lado, o
tipo de guerra «barata» na Líbia (barata para os EUA e outros membros da NATO,
não para o povo líbio que ainda está a pagar um preço horrendo) pode não ser
possível na Síria, onde os últimos cinco meses de revolta têm mostrado que o
regime reaccionário têm uma forte base social, bem como um verdadeiro exército.
Os estrategas norte-americanos (veja-se, por exemplo, www.ForeignPolicy.com) lamentam o facto de que uma
«zona de exclusão aérea» teria pouco efeito na Síria, onde o regime não tem
usado aviões militares, e de o poder aéreo não poder ser aplicado para ajudar as
forças anti-regime porque a extensão dos combates que agora decorrem acontece em
cidades densamente povoadas. «O que é apresentado como alternativa a uma
intervenção militar [terrestre] servirá mais provavelmente, quando falhar, para
abrir caminho a uma intervenção », avisa Marc Lynch nessa publicação.
Um golpe de estado irá proporcionar-lhes uma solução? Isso é uma
possibilidade, mas a Síria não é como a Tunísia e o Egipto em que as forças
armadas estavam intimamente ligadas aos EUA e tinham a sua confiança e não
estavam totalmente identificadas com o regime na mente das pessoas. As forças
armadas sírias acumularam enormes dívidas de sangue para com importantes
sectores do povo.
Não é possível prever o que irá acontecer – como é que os EUA e os seus
aliados podem tentar resolver o seu dilema e tomar posse da Síria. Mas nesta
altura já deveríamos saber, depois de tudo o que vimos no Iraque, no
Afeganistão, na Líbia e em tantos outros lugares, que aquilo de que os
imperialistas são capazes por vezes é pior do que podemos imaginar – e que as
consequências das intervenções deles são sempre desastrosos para o povo.
Sem comentários:
Enviar um comentário