terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Egipto: Ainda fora de controlo


Uma vez mais, os acontecimentos no Egipto apanharam todo a gente de surpresa, incluindo os seus intervenientes. Devido a uma conjugação de circunstâncias favoráveis e sobretudo à sua coragem e ousadia, os jovens que estiveram no centro do movimento que derrubou Hosni Mubarak recuperaram a iniciativa e reagiram aos esforços para manter o antigo regime sob uma nova forma.
Muitas pessoas estão a falar numa «Tahrir revigorada». Elas chamam ao passado sábado, em que os jovens pela primeira vez resistiram vitoriosamente às tentativas da polícia para os expulsar da principal praça do Cairo, o «dia 19», um retomar da revolta de 18 dias que teve início a 25 de Janeiro. Mas esse momento Tahrir, esses dias em que havia um consenso em toda a sociedade egípcia – de que Mubarak tinha acabado – não voltarão. As forças armadas que se desembaraçaram de Mubarak com a aprovação dos EUA têm levado a cabo uma guerra contra os jovens e tornaram-se no principal alvo desse movimento, apesar das ilusões iniciais de que os militares poderiam ser uma força positiva ou pelo menos neutra. Quando agora os manifestantes recuperam o antigo grito «O povo quer a queda do regime» e acrescentam explicitamente o nome do Marechal de Campo Tantawi, o chefe do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) que substituiu Mubarak, é em circunstâncias muito mais difíceis, face a batalhas ainda mais brutais do que no início do ano, e com uma população muito mais dividida. E isso é ainda mais audaz.
Em retrospectiva, pode ser que os últimos meses, em que o movimento recuou face a grandes obstáculos, devam ser considerados como de intensa acalmia no meio de uma contínua crise revolucionária, e não um refluxo da situação revolucionária. Embora a revolta tenha perdido a iniciativa, é claro que um grande número de pessoas continua profundamente insatisfeita e que de facto estavam a ficar cada vez mais enfurecidas e desesperadas. Quando viram uma oportunidade de agirem de uma forma decisiva, aproveitaram-na.
Essa oportunidade surgiu ligada a uma reunião de massas convocada pela Irmandade Muçulmana que visava pressionar o regime militar em seu próprio benefício. Os islamitas são reaccionários que tentam usar a religião e o domínio religioso para tornarem aceitáveis as relações de exploração e opressão que têm tornado insuportável a vida de tantos egípcios. Mas as contradições deles com o regime militar abriram espaço para algo totalmente diferente, uma tentativa que acabou por ser bem-sucedida de «repetir Tahrir» no sentido de uma nova ocupação com o objectivo de derrubar o novo/velho regime.
A reunião de 18 de Novembro teve início com um cenário diferente do que se viu em Janeiro e Fevereiro na Praça Tahrir do Cairo, ainda que tivesse sido o maior protesto desde então. Essa antiga Tahrir ficou marcada por um espírito quase utópico de ajuda mútua, autoconfiança colectiva e igualdade entre grupos étnicos, religiões e mesmo, até certo ponto, homens e mulheres. As fotografias mostram a presença de homens, mulheres e crianças e, às horas das orações muçulmanas, algumas pessoas que se ajoelhavam em devoção e outras que se mantinham em pé, todas misturadas, com muita gente a não rezar. A Irmandade, de certa forma tolerada e também por vezes reprimida no tempo de Mubarak, boicotou a revolta nos cruciais primeiros dias. Quando a Irmandade chegou, a sua presença não alterou o carácter do movimento.
Em contraste, quando surgiu a chamada à oração na tarde de sexta-feira, 18 de Novembro, quase nenhuma cabeça continuou levantada. Havia alguma distinção entre as multidões trazidas pela Irmandade Muçulmana (particularmente forte entre as classes médias, incluindo médicos, advogados, engenheiros e jornalistas) e pelos vários grupos salafistas (conhecidos pelo seu apoio entre os jovens urbanos pobres), embora essas diferenças com base na classe social sejam muito aproximadas e muitas vezes contraditórias. Havia uma grande variedade de pontos de vista sobre se o novo governo deveria ser civil na forma mas de base islâmica, ou baseado no modelo saudita (visto como um país rico e moderno onde o fundamentalismo sunita tem a supremacia, ao contrário do Afeganistão pobre e atrasado e do Irão xiita isolado pelo Ocidente). Mas parecia haver um sentimento partilhado de que o Islão deve ser considerado a única fonte de moralidade e legitimidade política.
Entre os grupos de jovens e os partidos de esquerda que estavam presentes, a maioria tentou literalmente manter-se distante dos grupos islamitas (cada um organizado à volta do seu próprio pódio e pregadores) e manter uma identidade política distinta focada na oposição aos julgamentos militares e à repressão política, temas sobre os quais os islamitas raramente falam. Houve um debate sobre se se deveria ou não tentar ocupar a Praça Tahrir. Ao início da noite, a Irmandade Muçulmana e os principais grupos salafistas declararam o evento terminado e saíram. A Organização de Jovens 6 de Abril, o mais conhecido grupo de jovens laicos, anunciou que em vez de tentar ficar na praça iria convocar outra manifestação para a sexta-feira seguinte (o único dia em que a maioria das pessoas não trabalha).
Uma anterior tentativa de «repetir Tahrir» em Julho não obteve impulso suficiente para impedir um ataque policial que esvaziou a praça nem para sobreviver à interrupção de um mês para o Ramadão em Agosto. O SCAF tinha sido forçado a autorizar as manifestações e reuniões na Tahrir e noutros lugares, mas a sua ocupação, que acabou por ficar a representar um desafio à legitimidade do actual regime, não tem sido permitida.
Porém, alguns jovens, cerca de uma centena segundo os relatos, decidiram que mesmo assim ficariam durante a noite na Tahrir. Na manhã seguinte, foram atacados pelas Forças Centrais de Segurança, a bem treinada e organizada polícia antimotim vestida de negro de Mubarak. Por duas vezes nesse dia, de manhã e sobretudo ao início da noite, a polícia quase conseguiu expulsá-los, mas milhares de jovens começaram a surgir vindos de toda a cidade. A princípio, vinham individualmente ou em pequenos grupos. Mais tarde, havia colunas a marchar de pontos de concentração noutras praças do centro da cidade e mesmo de bairros mais distantes, tanto pobres como da classe média. A batalha foi intensa; morreram pelo menos duas pessoas. A polícia usou gás lacrimogéneo, bastões, barras eléctricas, espingardas com balas de borracha e chumbo de caça, e balas normais. Soldados nos telhados dos edifícios vizinhos mais altos atiravam para baixo granadas de gás lacrimogéneo e outros objectos mortais. A estação do metro – uma das duas principais ligações da cidade – foi fechada para impedir novas chegadas. Mohamed El Baradei, o ex-Presidente da Agência Internacional da Energia Atómica galardoado com o Prémio Nobel que é o mais proeminente candidato às ainda não marcadas eleições presidenciais, foi à praça. Alguns islamitas, sobretudo jovens, regressaram.
Houve outras manifestações que irromperam em pelo menos sete outras cidades. No Suez, onde as pessoas tinham incendiado totalmente a esquadra da polícia e outros edifícios oficiais nos primeiros dias da revolta de Janeiro, a nova sede da polícia foi atacada. Além de Alexandria, também houve violentos protestos em várias cidades de menor dimensão ao longo do Nilo superior.
A Tahrir continuou ocupada na noite de sábado. A polícia atacou ainda mais ferozmente no dia seguinte, matando pelo menos mais 11 pessoas. Os hospitais reportaram cerca de 1800 feridos no sábado e no domingo. Dois conhecidos grupos de fãs de futebol («ultras») vieram reforçar a batalha contra a polícia que sempre os tem tratado com brutalidade. Segundo alguns relatos, também houve polícias militares e oficiais militares a participar no ataque às pessoas. Mas, no domingo e na segunda-feira, por vezes os manifestantes conseguiram passar à ofensiva. Marcharam repetidas vezes rumo ao Ministério do Interior, um dos mais importantes alvos deixados incólumes depois de Janeiro e Fevereiro. Obviamente, eles sentiam que havia obra inacabada.
Durante os últimos meses, a cada vez maior utilização pelas forças armadas de violência aberta, por vezes feita directamente por soldados bem como por polícias, certamente que tem assustado muita gente, mas também fez com que muitas pessoas concluíssem que o controlo militar é o problema, e não a solução – e que uma nova tentativa de «repetir Tahrir», desta vez contra o exército, é a única saída de uma situação que se deteriora.
Contudo, foi a Irmandade Muçulmana e não as organizações de jovens e certamente nenhum dos partidos da «esquerda» tradicional que convocaram uma «Marcha de um Milhão de Homens» para 18 de Novembro na Praça Tahrir. (Como se veio a verificar, o número foi mais próximo dos 50 000.) Foi anunciado como «O Dia de uma Só Reivindicação» – a de que os militares abandonem o poder. Isto pode parecer surpreendente, dado que os militares e os islamitas têm agido como «uma só mão» na tentativa de restabelecer a estabilidade e levar as pessoas para fora das ruas e para as urnas de voto das eleições parlamentares marcadas para 28 de Novembro, que os islamitas esperam que venham a dar-lhes um papel central num novo governo civil.
O aparente conflito da Irmandade Muçulmana com o exército precipitou-se quando um ministro civil que responde, tal como todo o governo, perante os generais, propôs numa reunião dos principais partidos políticos que fosse permitido que as forças armadas ditassem agora certos princípios constitucionais, que escolham a maioria dos membros do painel que irá escrever a nova constituição depois do parlamento ser eleito, e que fique permanentemente acima de interferência civil ou mesmo de supervisão orçamental. O braço eleitoral da Irmandade, o Partido Liberdade e Justiça, declarou que isso era uma ameaça ao surgimento da «democracia» no Egipto. Certamente que um grande número de pessoas viu essas medidas como uma tentativa descarada de perpetuar o domínio militar sob uma folha de parra parlamentar.
Porém, ao mesmo tempo, tal como salientam os críticos laicos da Irmandade, a proposta continha artigos e procedimentos que poderiam tornar mais difícil declarar o Egipto uma república islâmica, restrinja as opções dos partidos islamitas e, claro, mantinha-os sob supervisão militar. Embora os EUA e os seus lacaios egípcios sejam unânimes na sua convicção de que as eleições parlamentares são a única forma de restabelecer a legitimidade das instituições do estado, e embora a maioria dos observadores pense que um parlamento dominado pelos islamitas será o resultado mais provável, pode muito bem ser que haja uma contenda entre as várias forças islamitas e os generais.
Há ainda um outro factor provável, embora não tenha sido revelada nenhuma prova: os EUA. Durante o período em que a Irmandade estava a negociar com os militares sobre se cancelava ou não a ameaçada manifestação de 18 de Novembro e também estava oficialmente em contacto com os representantes do Departamento de Estado dos EUA, os responsáveis governamentais norte-americanos começaram a exprimir descontentamento com os esforços dos militares egípcios para limitarem formalmente os poderes de um futuro governo civil. A Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton disse: «Se, com o passar do tempo, as forças políticas mais poderosas do Egipto continuarem a ser um punhado de oficiais não eleitos, eles terão plantado as sementes de futuras desordens e o Egipto terá perdido uma oportunidade histórica» (New York Times, 16 de Novembro). Por outras palavras, embora em teoria os EUA possam concordar com os projectos dos generais, os seus responsáveis temem que a continuação do domínio militar aberto possa minar os interesses dos EUA, os quais requerem um governo cuja estabilidade não depende apenas da violência mas também de um suficiente grau de legitimidade aos olhos das pessoas.
Isto não significa que os EUA planeiem tentar avançar sem as forças armadas egípcias de quase um milhão de homens. Elas recebem 1,3 mil milhões de dólares por ano em financiamento directo norte-americano e os EUA há décadas que cultivam cuidadosamente o seu corpo de oficiais. Mas as forças armadas egípcias têm os seus próprios interesses políticos e económicos, incluindo uma gigantesca rede de empresas sob o seu comando. Grosso modo, estima-se que 40 por cento da economia do país seja controlada por uma rede de militares e outras empresas estatais e companhias privadas geridas por oficiais aposentados.
O sistema financeiro imperialista, falando através do FMI, tem reclamado frequentemente que o investimento estrangeiro seria melhor servido por mais oportunidades para o sector «privado». Os EUA já antes haviam encorajado o filho de Hosni Mubarak e seu sucessor designado, Gamal, porque ele tentou expandir, à custa dos militares, o sector do capital «privado» agora defendido por candidatos presidenciais civis como El Baradei. (De facto, numa economia organizada segundo as leis do capitalismo, tanto o capital do estado como o «privado» são efectivamente privados em termos de colocarem os estreitos interesses particulares acima dos interesses gerais da sociedade.) Os EUA e os militares egípcios não podem passar uns sem os outros, mas isso não significa que os seus interesses sejam idênticos.
Quanto aos EUA e os islamitas, a atitude do governo norte-americano parece ser «talvez». Ninguém pode dizer exactamente onde pode levar um governo islamita e os responsáveis norte-americano estão certamente conscientes dos potenciais problemas de um governo islâmico às fronteiras de Israel. Mas os EUA, que mantiveram Mubarak no poder durante três décadas e que o seguraram quase até ao fim, não têm muitas opções. Se o Egipto se afastasse do domínio dos EUA, isso seria um desastre para os interesses norte-americanos na região e no mundo.
A questão fundamental pela qual se luta nas praças e nas ruas é saber quem irá governar o Egipto: se os islamitas, os generais ou aqueles que se declararem leais aos «direitos humanos»; e sob que forma, através de uma junta militar, um parlamento e um presidente civil, ou um emir (líder político religioso). Estas são questões muito importantes e com implicações profundas e de longo prazo. Mas saber quem governa e qual a forma de governo não resolve a questão do conteúdo do governo – a classe ou classes que detêm o poder político e, por conseguinte, a forma como a sociedade é económica e politicamente organizada, para que fim, e que ideologia é promovida.
É vital compreender que a reivindicação comum do fim do domínio militar engloba possíveis resultados opostos que representam interesses mutuamente antagónicos. A questão é saber se o domínio militar aberto chega ao fim de uma forma que encoraja ou desencoraja a luta do povo de ir mais longe.
Mesmo que todo o governo, nomeado pelos militares, do primeiro-ministro Essam Sharaf, uma figura do tempo de Mubarak, seja substituído num esforço para acalmar a revolta, é provável que os militares continuem a dar ordens. De forma nenhuma, independentemente de qual o civil que seja nomeado primeiro-ministro e de qual seja o presidente, as forças armadas continuarão a ter a última palavra, bem como o controlo de poderosas alavancas económicas, sociais e políticas. Afinal de contas, em que poder armado se iria basear qualquer outro governo?
Esta situação não seria alterada com a demissão do ministro que sugeriu que a nova constituição endosse formalmente a continuação do controlo militar, tal como a Irmandade Muçulmana e outros partidos têm exigido, nem sequer com a demissão de todos os ministros, uma ideia considerada tão extrema que esses partidos nem sequer a ousaram exigir na manhã de segunda-feira, mas que se tornou numa real possibilidade na segunda-feira à noite. O SCAF pode tentar «repetir Tahrir» à sua própria maneira, desembaraçando-se de quem for necessário para evitar ser derrubado.
El Baradei propõe agora a substituição do governo nomeado pelo SCAF por um governo de unidade nacional composto por todos os principais partidos políticos, e que inclua os islamitas e pessoas como ele próprio. (Segundo o Al Ahram, a Organização de Jovens 6 de Abril endossou esta proposta.) Também é notável que a recente decisão do SCAF de aceitar fundos do FMI (e portanto as decisões dele) despertou pouca controvérsia entre esses partidos. Independentemente de quão reais sejam as diferenças entre eles, no final eles são todos dóceis ao sistema económico global dominado pelo imperialismo e pelas suas relações de poder.
Enquanto o exército não for desmantelado pela força revolucionária, continuará a ser a coluna vertebral e o pilar de qualquer regime. Os islamitas podem ter os seus próprios interesses e programa, mas em definitivo eles planeiam governar com o exército, não contra ele. (Num outro acto de descarada hipocrisia, quando a jogada deles de usarem as ruas a seu favor lhes saiu pela culatra, eles pediram o fim de todas as manifestações de rua. Um proeminente líder da Irmandade que a 21 de Novembro foi à Tahrir com um punhado de apoiantes foi expulso da praça aos gritos.)
Para muita gente, o melhor resultado seria um governo escolhido por maioria em eleições. Isto é sobretudo compreensível num país que nunca conheceu outra coisa que não uma monarquia e o domínio militar onde os ocasionais candidatos de oposição que não eram pagos pelo regime muitas vezes terminavam na prisão ou no exílio. Mas mesmo com verdadeiras eleições, a democracia parlamentar é perfeitamente compatível e frequentemente a melhor forma de ditadura das classes exploradoras. A igualdade formal dos cidadãos perante a lei mascara e potencia as enormes desigualdades que caracterizam o Egipto, pelo menos tanto como em qualquer outro país.
Além disso, a experiência egípcia dos últimos nove meses é rica em exemplos de como uma revolta não sancionada por eleições pode atrair as pessoas comuns para a vida política e lhes pode permitir mudar as coisas essenciais através dos seus actos e de como a experiência (e a promessa) de eleições as pode despojar do seu papel consciente e activo. Também tem sublinhado as limitações de uma revolta espontânea que não vise o poder se estado.
A Irmandade Muçulmana alega agora que os mais recentes confrontos foram encorajados por provocadores para forçar o cancelamento das próximas eleições. Mas talvez um factor na actual insurreição é que muita gente já decidiu que não pode esperar nada de bom deste processo eleitoral, mesmo que não percam a esperança na democracia parlamentar em abstracto.
Alguns dos participantes intelectuais na revolta realmente questionam a democracia parlamentar como alternativa viável ou mesmo desejável aos militares. Alguns dos argumentos de islamitas «moderados» a favor da chamada supremacia das eleições são instrutivos a este propósito. Eles alegam que, dado que a maioria dos egípcios são muçulmanos praticantes, então faz sentido o país tornar-se num estado islâmico. Isto poderia ser considerado apenas oportunismo do mais hipócrita – afinal de contas, essas forças pretendem fazer tudo ao seu alcance para definirem as condições do debate da forma mais manipuladora e coerciva e nunca se basearam apenas na persuasão – mas há aqui uma verdade real e inevitável: a maioria pode ser enganada e certamente que o que a maioria possa pensar em qualquer momento não corresponde necessariamente aos interesses fundamentais da vasta maioria das pessoas. Aqueles que lutaram pelo derrube de Mubarak e que têm continuado a revolta nem sempre tiveram o vasto apoio visível que queriam.
A verdade é que, no Egipto, não só a democracia parlamentar irá ser uma forma de ditadura das classes exploradoras em que os mais profundos interesses e desejos do povo não terão nenhum peso em decisões fundamentais, como será duplamente vazia porque, no fim de contas, a vida no Egipto é determinada pelos interesses e decisões dos imperialistas, as potências cujos instrumentos gémeos de subjugação são as suas forças armadas e o mercado global.
Para dar apenas um exemplo: embora o vale e o delta do Nilo onde vive a maioria dos egípcios estejam entre as terras mais férteis do mundo, o trigo e outros alimentos importados são mais baratos que os de produção interna e o mercado mundial esmagou a agricultura do Egipto. Como consequência, o país tornou-se no maior importador de trigo do mundo (e a «ajuda» norte-americana assegura que ele é comprado aos EUA). Para pagar esse componente central da alimentação das pessoas, o país tem de depender das receitas do canal do Suez (sem as quais as forças armadas e a burocracia nunca teriam ficado tão inchadas), da exportação de gás (o Egipto envia gás para Israel enquanto os egípcios cozinham com lenha ou usam tanques de propano inadequados e perigosos), do turismo (que requer uma população dócil) e sobretudo da exportação de pessoas (o dinheiro enviado para casa pelos egípcios forçados a trabalhar no estrangeiro). A dependência em relação a esses sectores é um obstáculo a um desenvolvimento global da economia, incluindo o emprego. Há tantas pessoas famintas de trabalho no Delta do Nilo que a China e o Irão, além das potências ocidentais, aí instalaram fábricas para explorarem o trabalho barato egípcio.
Mudar o desenvolvimento subordinado do país e os seus efeitos desastrosos em todos os aspectos da vida das pessoas, incluindo a sua existência diária e a sua cultura e pensamento – já para não falar em se libertarem de todas as outras relações de exploração e opressão na vida egípcia – não pode imaginavelmente acontecer sem uma revolução sistemática, sem o derrube pela força do poder das classes exploradoras e a instauração de todo um novo tipo de regime, liderado por um partido que tenha o objectivo e um plano para libertar o Egipto como parte de acabar com a exploração e a opressão à escala mundial.
Em qualquer país, incluindo no Egipto, fazer-se uma revolução é inconcebível a menos que um sector do povo dirigido por um partido assim possa navegar vitoriosamente através de uma complexa mistura de factores favoráveis e desfavoráveis. Mas a complexidade da actual situação egípcia contém factores positivos que são raros na história de qualquer país. Os inimigos do povo não têm conseguido resolver uma crise política que se tem agravado desde Janeiro e que agora se agudizou. Até agora, não têm conseguido restabelecer a legitimidade das suas instituições de domínio nem estabelecer novas. Se eles têm vacilado na escolha de um rumo de acção, é porque qualquer escolha que façam corre o risco de agravar ainda mais esta crise. Por exemplo, espancar e disparar sobre manifestantes não tem sido uma solução usada por eles, mas mudar isso pode fazer com que a fúria popular fervilhe. Um compromisso sério com a luta popular pode dar aos rebeldes um cheiro a vitória que os deixe famintos de mais, agora ou nalgum momento posterior, sobretudo se essas cedências não satisfizerem as suas expectativas.
A persistência dos jovens e de outras pessoas – apesar de um período difícil em que houve mais passividade que acção de rua, sobretudo entre os sectores mais desfavorecidos das massas – tem mostrado ser um factor criador de uma disposição em toda a sociedade. É verdade que esta «elite da Internet», como um político egípcio os rotulou com desdém, nem sempre tem conseguido despertar as massas em geral. Contudo, ela tem sido um importante elemento a impedir que os militares e as forças islamitas consolidem o seu poder e a manter viva a possibilidade de as massas em geral poderem vir a intervir uma vez mais na definição do futuro do país, tal como o haviam feito durante esses 18 dias de Janeiro e Fevereiro.
Neste momento, uma vasta diversidade de jovens, não só «a elite da Internet» mas também estudantes da classe operária e jovens das classes mais baixas em geral, tornaram-se incontroláveis. Eles são activamente apoiados por muitos milhares de outros homens e algumas mulheres. De facto, conquistaram suficiente simpatia e apoio para que milhões de pessoas possam considerar que eles estão mais em contacto com os seus interesses e mesmo mais legítimos que o regime dominante. A coragem deles face a repressão é tal que muitos adoptaram o hábito de escrever o número de telefone dos seus familiares mais próximos no braço para o caso de serem encontrados mortos ou inconscientes – um medo que não os detém. A solidariedade é tal que no meio do gás lacrimogéneo as pessoas têm formado longas linhas para doarem sangue em duas estações móveis instaladas na Praça Tahrir.
Os factores que desencadearam esse primeiro momento Tahrir – a incapacidade das classes dominantes de governarem da forma antiga e a vontade de um grande sector do povo de arriscar a morte em vez de continuar a viver da forma antiga – permanecem por resolver e continuam a interagir.

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